domingo, 13 de março de 2011

Reflexos de um domingo preguiçoso

Domingo de manhã, céu nublado, frio lá fora. Nada melhor pra fazer do que ceder ao clichê e ficar preguiçosamente deitada, caneca de café, pijama de flanela, livro leve de crônicas várias. Assim fiz e retomei a leitura de Doidas e Santas, de Martha Medeiros, que comecei dias atrás. E um dos textos me chamou especial atenção, ao estabelecer um paralelo entre a vida feliz e a vida interessante. A primeira, a grosso modo definida como ter um emprego, ganhar dinheiro, casar, ter filhos. A segunda, aventurar-se, permitir-se coisas inusitadas. Eu posso dizer hoje que me permiti a “vida interessante”, mesmo que por vezes tenha desejado a “vida feliz”, que me parece talvez mais simples, mais cômoda, como conclui o próprio texto. Quantas vezes, ao preencher a ficha médica no consultório, fiquei na dúvida: “advogada” ou “stewardess” (e aí alguém pergunta: o que é isso?); “divorciada” (oficialmente) ou “casada” (de fato, não de direito)? Endereço? Eu, que tenho dois prenomes e dois sobrenomes, muitas vezes escolhi um ou outro, combinei-os diferentemente, como quem escolhe uma ou outra identidade. Afinal, para que rótulos? Nada muda o essencial, o meu perfil, quem sou, mesmo que seja múltipla. E, com certeza, mesmo que vivesse o padrão da “vida feliz”, ainda assim faria dela uma “vida interessante”, não conseguiria me conter, sei disso.

Sendo assim, segue o texto de Martha Medeiros com o qual me identifiquei:

UMA VIDA INTERESSANTE

E, se eu lhe disser que estou com medo de ser feliz pra sempre?" pergunta ao seu analista a personagem Mercedes, da peça Divã, que estréia hoje em Porto Alegre.

É uma pergunta que vem ao encontro do que se debateu dias atrás num programa de tevê. O psicanalista Contardo Calligaris comentou que ser feliz não é tão importante, que mais vale uma vida interessante. Como algumas pessoas demonstraram certo desconforto com essa citação, acho que vale um mergulhinho no assunto.

"Ser feliz", no contexto em que foi exposto, significa o cumprimento das metas tradicionais: ter um bom emprego, ganhar algum dinheiro, ser casado e ter filhos.

Isso traz felicidade? Claro que traz. Saber que "chegamos lá" sempre é uma fonte de tranqüilidade e segurança. Conseguimos nos enquadrar, como era o esperado. A vida tal qual manda o figurino. Um delicioso feijão-com-arroz. E o que se faz com nossas outras ambições?

Não por acaso a biografia de Danuza Leão estourou. Ali estava a história de uma mulher que não correu atrás de uma vida feliz, mas de uma vida intensa, com todos os preços a pagar por ela. A maioria das pessoas lê esse tipo de relato como se fosse ficção. Era uma vez uma mulher charmosa que foi modelo internacional, casou com jornalistas respeitados, era amiga de intelectuais, vivia na noite carioca e, por tudo isso, deu a sorte de viver uma vida interessante. Deu sorte? Alguma, mas nada teria acontecido se ela não tivesse tido peito. E ela sempre teve. Ao menos, metaforicamente.

Pessoas com vidas interessantes não têm fricote. Elas trocam de cidade. Investem em projetos sem garantia. Interessam-se por gente que é o oposto delas. Pedem demissão sem ter outro emprego em vista. Aceitam um convite para fazer o que nunca fizeram. Estão dispostas a mudar de cor preferida, de prato predileto. Começam do zero inúmeras vezes. Não se assustam com a passagem do tempo. Sobem no palco, tosam o cabelo, fazem loucuras por amor, compram passagens só de ida. Para os rotuladores de plantão, um bando de inconseqüentes. Ou artistas, o que dá no mesmo.

Ter uma vida interessante não é prerrogativa de uma classe. É acessível a médicos, donas de casa, operadores de telemarketing, professoras, fiscais da Receita, ascensoristas.

Gente que assimilou bem as regras do jogo (trabalhar, casar, ter filhos, morrer e ir pró céu), mas que, a exemplo de Groucho Marx, desconfia dos clubes que lhe aceitam como sócia. Qual é a relevância do que nos é perguntado numa ficha de inscrição, num cadastro para avaliar quem somos? Nome, endereço, estado civil, RG, CPF. Aprovado.Bem-vindo ao mundo feliz.

Uma vida interessante é menos burocrática, mas exige muito mais.

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